sábado, 8 de maio de 2010

O Empreendimento Cognitivo em Linguística II

A Semântica Cognitiva: princípios-guia

As teorias formuladas sob o termo-guarda-chuva "Semântica Cognitiva" são algumas das mais estimulantes em LC. Basicamente, a Gramática Cognitiva de Langacker parte dos pressupostos daquela área para a construção dos seus modelos de análise.

Como dito antes, este post será apenas uma rápida apresentação das principais teorias e seus princípios-guia, para depois tratarmos de cada teoria separadamente e com mais calma.
Nas palavras de Evans, Bergen e Zinken (2007), a Semântica Cognitiva possui quatro princípios-guia, quais sejam:

(i) A estrutura conceptual é corporificada (a Tese da Cognição Corporificada)
(ii) A estrutura semântica é estrutura conceptual;
(iii) A representação do sentido (meaning) é enciclopédica e não dicionária;
(iv) A construção do sentido é conceptualização.

Tentando resumir em um rápido parágrafo, esses quatro princípios-guia encaram a construção do sentido, em termos linguísticos, a partir de operações cognitivas mais gerais, a conceptualização. Com isso, tomar esses quatro princípios-guia em um estudo sobre a linguagem humana é praticamente aproximar as estruturas linguísticas das estruturas conceptuais mais gerais. O primeiro princípio tem a ver com a hipótese da corporeidade, segundo a qual a nossa base corpórea é que serve como ponto de partida para o processo de conceptualização. O segundo princípio tem a ver com a afirmação de que o conhecimento linguístico não é objetivista, e sim, representacional. Já o terceiro princípio, dizer que a representação do sentido é enciclopédica, é dizer que as unidades linguísticas não "contém" significados, e sim, são pontos de acesso para o processo de construção do sentido. Em um rápido exemplo, ao ouvirmos alguém pronunciando a palavra "praia", não iremos pensar em uma entidade única e bem delimitada, mas também em todos os outros elementos que constituem nosso conhecimento, enciclopédico, sobre o que entendemos ser uma "praia".
Tudo isso do parágrafo anterior vem a contribuir para o entendimento do que é dizer "construção do sentido é conceptualização".

Dentre as teorias elaboradas em Semântica Cognitiva, temos:
A Teoria dos Esquemas Imagéticos (image schema), primeiramente proposta em Johnson (1987);
A dos Modelos Cognitivos Idealizados (Idealized Cognitive Models-ICMs), apresentada em Lakoff (1987);
A Teoria das Metáforas Conceptuais e Metonímias Conceptuais, apresentada primeiramente em Lakoff e Johnson (1980);
A dos Espaços Mentais (Mental Spaces), apresentado em Fauconnier (1985);
A Teoria da Integração Conceptual (Conceptual Blending), proposta por Fauconnier e Turner (2002).

Há muitas outras teorias que mesmo que não levem categoricamente a rubrica de "teoria da semântica cognitiva" estão intrinsecamente relacionadas a ela, como a Teoria dos Domínios, a Semântica de Frames, de Fillmore, a Teoria dos Protótipos, a Teoria da Relevância, e os estudos de Semântica do Espaço.

Seria uma tarefa dura e bem chata para quem for ler falar de cada uma dessas teorias, mesmo que em linhas gerais. Por isso, melhor deixar para outros posts. Fica aqui só um gostinho do pequeno drama que é lidar com todo o universo da Semântica Cognitiva... Algo que para mim é mais estimulante ainda.



O Empreendimento Cognitivo em Linguística I

Histórico e pressupostos teórico-metodológicos


A Linguística Cognitiva (doravante LC) é considerada um novo empreendimento entre as correntes do pensamento linguístico. Da mesma forma que o Programa Gerativista, capitaneado por Noam Chomsky, a linguística cognitiva toma para si um programa de investigação preocupado com a relação entre a linguagem humana, a mente e as experiências sócio-físicas dos falantes. Seu início pode ser traçado até a década de 1970, período conhecido como o das "guerras linguísticas" entre a Semântica Gerativa e a Semântica Interpretativa. Guerra essa terminada com as palavras finais de enterro da Semântica Gerativa por parte de Chomsky.
Esse fato foi relativamente significativo para a formação do embrião da LC, tanto que Langacker irá mencioná-lo (Langacker, 2007), e Lakoff, em entrevista (clique aqui para acessar a entrevista), também faz menção.
Durante a década seguinte, surgem as primeiras publicações e propostas que apontavam para uma convergência de interesses entre diversos estudiosos que seguiam na mesma linha. Com isso, é importante sempre lembrar a postura de insatisfação com as abordagens formalistas de estudos da linguagem, bem exemplificada pelo Gerativismo, na formação do que então será chamado de "Empreendimento cognitivo em lingüística". As publicações mais significativas são as seguintes:

Lakoff e Johnson (1980), o famoso "Metaphors we live by" (Metáforas da vida cotidiana);

Lakoff (1987): "Women, fire and dangerous things: what categories reveal about mind" (Mulheres, fogo e coisas perigosas: o que as categorias revelam sobre a mente);
Johnson (1987): "The body in the mind" (O corpo na mente);
e os dois grandes volumes de
Langacker (1987; 1991): "Foundations of Cognitive Grammar" (Fundamentos de Gramática Cognitiva):




além de diversos artigos que seriam mais tarde coligidos em dois volumes sob o título de :

"Toward a Cognitive Semantics I: Concept Structuring Systems; e Toward a Cognitive Semantics II: Typology and Process in Concept Structuring" (Em busca de uma semântica cognitiva: I Sistemas de Estruturação Conceitual e II Tipologia e Processo na Estruturação Conceitual), de Leonard Talmy (2000).












Essas são algumas das publicações fundadoras da Linguística Cognitiva nos idos de 1980. Claro que muitos outros estudiosos, como Charles Fillmore, contribuiram nessa empreitada por esse período, mas o nome dos três: Lakoff, Langacker e Talmy foram mais proeminentes, tanto que são considerados os pais fundadores da LC.
Na década seguinte, de 1990, outras publicações vão aparecendo e novas abordagens vão se consolidando, como a Gramática de Construções de Adele Goldberg: "Constructions: a construction grammar approach to argument structure" (1995) (trad. Construções: uma abordagem da gramática de construções para a estrutura argumental), seguindo na linha de raciocínio da gramática de construção de Fillmore e Kay.

Felizmente, como gostamos de marcos históricos, considera-se o nascimento da Linguística Cognitiva no ano de 1989, ano de realização do primeiro Congresso Internacional de Linguística Cognitiva, e a criação da Associação Internacional de Linguística Cognitiva (International Cognitive Linguistics Association-ICLA). E dois anos depois, a publicação do periódico Cognitive Linguistics, publicado pela Mouton de Gruyter.
Como forma de manter uma certa coerência no seio do movimento, são bem conhecidos na literatura cognitivista os dois compromissos básicos:

  • O Compromisso de Generalização (Generalization Commitment): em rápidas palavras, seria a premissa de que o estudo da linguagem deve tomar como premissa básica a busca de explicações gerais para os fenômenos linguísticos. Este compromisso vai de encontro com o posicionamento modular da gramática gerativa. Ao invés de se postular um núcleo de investigação, como por exemplo, a sintaxe, o Compromisso de Generalização restringe (ou amplia) a explicação de determinado fenômeno linguístico a processos mais gerais, como os relacionados à memória, atenção, categorização, etc. Sob esse Compromisso, há também uma recusa de se estudar as clássicas subdivisões da linguística como níveis isolados: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática, são considerados em conjunto, e não são tomados um em detrimento de outro.

  • O Compromisso Cognitivo (Cognitive Commitment): este Compromisso tem a ver com a inserção que a Linguística Cognitiva busca entre as demais ciências cognitivas, como a Psicologia Cognitiva, a Neurociência, Antropologia Cognitiva, etc. A premissa básica deste Compromisso tem a ver com o que Lakoff chama de "converging evidence" (evidência convergente), na qual, os resultados alcançados na Linguística Cognitiva devem estar em acordo com o que é alcançado nas outras ciências cognitivas.
Vejo nesses Compromissos muito mais uma 'profissão de fé', mas como todo movimento, seria estranho que em LC não houvesse uma sistematização das suas premissas básicas na forma de uma 'profissão de fé'. Não deixa de ser diferente, para outros 'credos' (termo perigoso em ciência, mas se tomamos o posicionamento de Feyerabend de ciência, fica bem claro que posicionamentos teóricos são muito similares a credos religiosos, a depender da forma como os teóricos se apegam às suas teorias) em linguística.
Na esteira desses dois compromissos, é também conhecida a divisão de estudos em LC em duas grandes áreas: a Semântica Cognitiva e as Abordagens Cognitivas de Gramática, bem exemplificadas pela Gramática Cognitiva do Langacker e as Gramáticas de Construção, de Adele Goldberg e a "Radical Construction Grammar" (Gramática de Construções Radical), de William Croft.
Nos prósimos posts, nos ocupamos dessas duas grandes áreas.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quantas linguísticas cognitivas???

Para qualquer iniciante no mundo das teorias linguísticas, as primeiras braçadas no mar de alternativas teóricas são quase que suicidas. Isso se o futuro linguista já não é iniciado em um credo específico sem ter chance de conhecer outros mares...
Provavelmente para a maioria dos estudantes de Letras do Brasil, um primeiro contato deve se dar com o estruturalismo saussureano, enquanto outros são apresentados diretamente ao Chomsky da década de 1990 e a sua versão minimalista de gramática gerativa. Diante dessa profusão de teorias e abordagens, uma tábua de salvação pode vir de alguns bons conselhos do velho José Borges Neto, professor da Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Em entrevista recente para a Revista Virtual de Estudos da Linguagem-ReVEL, o prof. Borges fala da importância da História e da Filosofia da Linguística para um posicionamento mais crítico em relação às marés teóricas. Tal preocupação filosófica e histórica poderia e pode contribuir para um melhor senso de direção, para onde nadar ou que corrente marítima é melhor se deixar levar, de forma a não se afogar ou se afastar mais ainda de terra firme.
Tive essas ponderações após ler o capítulo 20 do "The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics" sob o título "Cognitive Linguistics and Functional Linguistics" de Jan Nuyts. Nesse capítulo, o autor tenta delimitar a atuação da Linguística Cognitiva dentro do mosaico chamado linguística funcionalista, da qual a Linguística Cognitiva faz parte, por questão de afiliação.
Com esse texto, finalmente consegui entender melhor as 'caras' das linguísticas cognitivas produzidas na Europa e nos Estados Unidos. Esta é considerada o 'núcleo' e ponto de surgimento das principais teorias que iriam configurar o(s) campo(s) de investigação e atuação dos linguistas cognitivistas, nas palavras de Nuyts, os domínios de investigação da área. Aquela, considerada cognitivista-funcionalista, abarcaria diversos autores e diferentes linhas de atuação, a maioria com um background funcionalista, enquanto que os linguistas cognitivistas americanos geralmente tiveram uma formação gerativista.
Fica fácil ver que além de uma maré teórica, ao chegar em terra firme, o aspitante a linguista tem que se ver com uma floresta de mais alternativas. Caso tome a direção da floresta cognitivista, o sortudo náufrago também se depara com diversas trilhas a seguir, algumas já traçadas e outras ainda em produção...
Só como um exemplo, Nuyts enumera algumas facetas teóricas que poderiam ser apontadas como indicadoras das sutis diferenças entre as linguísticas cognitivas produzidas no Velho Mundo e por essas bandas de cá do chamado Novo Mundo. Para os cognitivistas ligadas à Universidade da California, em Berkeley e San Diego, temos:

  • Uma maior preocupação com questões mais semânticas da língua, por isso a ênfase na Teoria das Metáforas Conceituais, os construtos dos Esquemas Imagéticos, etc;
  • Uma maior preocupação com temas relacionados a outras ciências cognitivas como a Psicologia Cognitiva e as neurociências, como os estudos sobre categorização, a proposta de Lakoff dos Modelos Cognitivos Idealizados-MCIs, o construto dos Espaços Mentais e Integração Conceptual, também chamada de Mesclagem (do inglês blending), etc.;
  • e a elaboração de modelos cognitivos de gramáticas preocupados com a simbolização, como exemplo a Gramática Cognitiva de Ronald W. Langacker, etc.
Já entre os linguistas cognitivistas europeus, há uma maior preocupação com aspectos cognitivos, sociais e culturais relacionados à produção de construtos teóricos menos 'psicológicos'. Como exemplo, tem-se a recente proposta de uma Sociolinguística Cognitiva, conforme proposta de Gitte Kristiansen e René Dirven (2008). É também da linha cognitivista da Europa que tem vindo uma preocupação maior com outros domínios de investigação, como por exemplo o diálogo da Linguística Cognitiva com a linguísticas de corpus e as pesquisas tipológicas, com William Croft. Em resumo, a linguística cognitiva em seu ramo europeu não perdeu por completo a ligação com seu background funcionalista, talvez por isso a classificação de Nuyts, para os cognitivistas europeus, de funcionalistas-cognitivistas.
Atentar para as rápidas e não poucas vezes duradouras (de)semelhanças entre as linguísticas cognitivas é uma forma de não se perder pelas trilhas cognitivistas. Nesse ponto, volto a ressaltar a importância da História e da Filosofia da Linguística, ou pelo menos, de uma forma menos prescritiva, uma preocupação com as fontes históricas e filosóficas das trilhas a que se decidiu seguir.
Para provar tal importância, vejamos o caso brasileiro. Para um desbravador da floresta cognitivista em terras brasileiras, as trilhas às vezes parecem mais difusas. Aqui se fala em sociocognitivismo, linha de investigação capitaneada pela profa. Margarida Salomão, da Universidade Federal de Juíz de Fora-UFJF. Apesar da formação da profa. Margarida Salomão ter sido em Berkeley, no Núcleo forte da linguística cognitiva, em terras 'brasilis' a linguista propõe uma maior preocupação com questões sociais, de uma forma levemente diferente da Sociolinguística Cognitiva proposta na Europa. No momento eu não teria fontes nem espaço para explanar mais sobre o sociocognitivismo advogado pela dita professora e seus seguidores, mas acredito que tal preocupação com questões mais sociais na exploração da linguística cogntiva no Brasil tenha se dado ou por mudança de foco de pesquisa no decorrer da carreira da profa. Salomão ou pelo ambiente propício, no Brasil, de desenvolvimento de uma linguística cognitiva que incorpore mais elementos sócio-culturais. Bem, espero poder voltar ao tema em outra oportunidade, principalmente caso eu tenha escrito alguma aberração por aqui no que diz respeito aos cognitivistas brasileiros, dada a minha maior familiaridade com os estadunidenses do que com os próprios brasileiros, em relação à literatura cognitivista.
Em suma, podemos falar que debaixo do guarda-chuva "Linguística Cognitiva" temos na verdade várias linguísticas cognitivas, fato a ser comemorado. Pluralismo teórico e metodológico faz parte do bom andar das ciências, como já dizia o mestre do anarquismo epistemológico, Paul Feyerabend. Nesse caso, o melhor é se embrenhar na floresta cognitivista com um espírito de naturalista, à la Charles Darwin.

PS. Pra fazer jus aos linguistas cognitivistas brasileiros, deixo aqui o site do GT Linguística e Cognição, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística-ANPOLL.